quarta-feira, julho 24, 2013

Sobre cores e almas



— Não se cansa de vir aqui todos os dias?

A pergunta a pegou desprevenida, e Kallisto levantou os olhos do livro que lia, escondendo sua surpresa. Quase nunca falavam com ela, bem como ela quase nunca falava com os outros.

— As pessoas não se cansam daquilo que faz realmente bem.
— Mas você vem aqui todos os dias. Como pode sentir-se tão bem em um lugar tão simples?

Desta vez, Kallisto fechou o livro. Já havia perdido a concentração para lê-lo, de qualquer forma. Não sabia com quem estava falando, mas jamais sentira medo de estranhos. Eram pessoas como todas as outras, e ela mesma era estranha para muitos.

— Acho que por ser um lugar tão simples, se torna ignorado pelas pessoas. Sou ignorada pela maioria, também, embora não me importe com isso. Soa familiar para mim. Como um lar.
— Definiria seu lar como uma biblioteca antiga e pequena? — O estranho era tão jovem quanto ela, mas a curiosidade em seus grandes olhos azuis era genuína como a de uma criança.
Kallisto esperou que ele pudesse interpretar olhares tão bem quanto ela. Se fizesse esforço, talvez pudesse responder a pergunta, mas não queria. Era o tipo de coisa que não se diz em voz alta, só se sente. Gostava de pessoas assim, que pudessem ler pensamentos através de olhares. Pessoas assim, pessoas como ela, observavam mais do que falavam. Sentiam mais do que agiam, e por mais que isso a irritasse de vez em quando, era bom. Ela gostava de avaliar as pessoas assim, pelo que observava. Era assim que descobria quando alguém era digno de atenção. Era assim que aprendia, aos pouquinhos, novas formas de pensamento, e era assim também que aprendia mais sobre si mesma. Já havia descoberto várias coisas com essa técnica. Mas ainda não sabia por que queria tanto que ele fosse como ela.

— Sempre usa cores tão escuras? — Ele perguntou de novo, mas desta vez não olhava para os olhos da moça a sua frente, mas sim para suas roupas.
— Sempre faz tantas perguntas? — Ela lhe respondeu, e uma pontinha de raiva queimou em sua voz, tentando esconder a vergonha presente em seu rosto.
— Apenas quando a pessoa me interessa. Mas ainda não respondeu à última pergunta que fiz.
— Sempre. Cores escuras definem quem eu sou. Fazem parte de mim.

O rapaz sentou-se no lugar vago ao lado da menina no pequeno sofá avermelhado, em silêncio. Pesava, mentalmente, a revelação que ouviu. Quando falou, sua voz era arrastada, e tão calma e baixa que Kallisto poderia dizer que ele mesmo mal percebia que estava falando.

— Talvez não sejam parte de você. Talvez você seja parte delas. Talvez você não queira mudar. — Ela considerou a avaliação dele por um momento, mas logo a descartou, balançando a cabeça.
— Não sei para o que poderia mudar. Estão em minha alma, apenas.
— Sua alma não é escura como o cinza do seu casaco, ou como o azul de seu gorro. — Ela esperava que ele falasse algo do tipo, mas em forma de pergunta. Era estranho como conseguia entender a forma de pensar de quem quisesse apenas observando, mas não conseguia entender o jovem do seu lado, mesmo depois de tanta conversa. Ela não conseguia nem mesmo se lembrar da última vez que conversara por tanto tempo com alguém.
— Então talvez ela seja apagada como essa biblioteca.
— Não acho que ela seja apagada ou escura. Acho só que ela é fria, como o inverno.
— O que sabe sobre a alma das pessoas? — Dessa vez, a indiferença costumeira na voz de Kallisto era maior, e sua voz soava quase tão fria quanto o inverno, mas isso não o abalou.
— Ah, não sei muito. Sei mesmo é sobre os olhos. O pouco que sei sobre almas, são os olhos que me contam.

Ela se recusava a fazer suas perguntas em alto e bom som. Ao mesmo tempo, queria testá-lo. Se ele entendia dos olhos das pessoas como ela entendia das almas, então que decodificasse seus pensamentos sozinho.

— Já ouviu dizer que os olhos são as janelas da alma? É verdade, se você souber olhar. Gosto de conversar com as pessoas olhando em seus olhos porque assim aprendo mais sobre elas do que com qualquer pergunta, apesar de tudo. As pessoas mostram um pedacinho de suas almas através dos olhos, e eu levo um pedacinho de suas almas comigo também, depois de conhecê-las. — Ele explicou. — Seus olhos são escuros, mas sua alma não.
— Como tem tanta certeza?  — Pela primeira vez em muito tempo, Kallisto não se importou em demonstrar vergonha.
— Lembra-se de quando perguntei sobre você vir aqui todos os dias? Eu venho também.
— Nunca te vi antes.
— Porque eu aprendi a notar sem ser notado. Como você. Mas eu te notei, e você me notou agora. E agora eu também noto a pergunta em seus olhos, vê? Eu te notei porque você é como eu, e sei que sua alma não é escura como seus olhos e suas roupas porque a minha também não é.

Ela olhou fundo nos olhos azuis do desconhecido que, no momento, parecia conhecê-la há muitos anos. Ele subia no seu conceito aos poucos, e ela se divertia com a conversa, esperando apenas que seus olhos não a traíssem mais uma vez.

— Você é prepotente.
— Você é sincera. Eu gosto disso. — Ele sorriu, e se levantou.
— Aonde você vai?
— Engraçado, agora não sou eu quem faço as perguntas. — Ele observou, com um traço de provocação na voz.

Kallisto não o respondeu. Permaneceram em silêncio por um momento.

— Eu preciso ir. Mas voltarei amanhã, e sei que você vai voltar também. Ninguém consegue ficar muito tempo longe do que chamam de lar.

Kallisto não o respondeu mais uma vez, pois sabia que não precisava falar alto para que ele entendesse. Ele se foi, mas mesmo depois disso ela não voltou a ler o livro. Ainda pensava no que disseram, e foi então que percebeu que nem ao menos sabia o nome do rapaz que lhe havia feito companhia nos últimos minutos. Mas não importava; ele estava certo. Ele voltaria amanhã, e ela também. E ambos sabiam mais um sobre o outro do que saberiam se tivessem começado a conversa normalmente, porque conversaram pelos olhos, e pelos olhos viram as almas. O pouco que ainda não sabiam poderiam aprender aos poucos. Iriam aprender uma hora ou outra. Mas seria aos pouquinhos, bem aos pouquinhos. Afinal, suas bocas não falariam mais do que seus olhos jamais.

terça-feira, julho 16, 2013

Término repetido

Um vaso quebrado, uma foto rasgada, uma promessa descumprida. Um término repetido, mais lágrimas de raiva misturadas com a tristeza. A Nostalgia a deixava doente, e o arrependimento repetia em sua mente: “A culpa é sua! Viva com a consequência!”.

Brigava consigo mesma, enquanto tentava se fazer entender aquilo não valia a pena, e nem jamais iria valer, sabia disso desde o momento em que havia entrado naquele relacionamento. Mas bem no fundo de sua mente, algo dizia-lhe para tentar, sussurrando histórias de amor; uma voz suave que aos poucos se fez ouvida, merecida de reconhecimento.

Pedidos de perdão, novas fotografias sendo reveladas, novas promessas para de cumprir, e mais lágrimas. Dessa vez, de alegria. Com uma pitada de frustração, quem sabe. A voz que antes lhe sussurrava frases de amor, agora gritava canções. Mas ah, como se pode saber qual a voz da Razão, se na maioria das vezes a Loucura é mais atrativa? Esquecida, frágil e pequenina, era assim que a Sensatez se encontrava; encolhida num canto, abandonada no fundo da mente daquela que sempre clamou por sua presença. Murmurava para si mesma, sem nunca ser ouvida: “Oh, que tolice! Vai recomeçar tudo, é um ciclo sem fim! Um filhote de cachorro perseguindo sua cauda, é com isso que se parece!”. Murmurava com tanta tristeza que parecia ser a vítima de toda a situação, com tanta culpa que parecia arrependida que algo que jamais fez. E enquanto se lamentava em sua própria solidão, o verdadeiro culpado mais uma vez se fazia presente. Com ele, vieram novas promessas, novas juras de amor, e em breve viriam novos fantasmas do que se tornará um passado feliz e as lembranças do que ambos, culpado e vítima, já foram um dia.

terça-feira, julho 09, 2013

Indefinido



(com participação de Amanda Botelho)


Ele tinha nome de anjo
Textura de algodão
Cabelo de índio 
Mente sempre distante.
Incerto era o tom dos seus olhos
Queria viajar pelo globo
Ganhou até apelido, veja só!
Mochileiro de lugar-nenhum.

Ela tinha nome comum
O que a diferenciava era a mente:
Inconstante como só
Distante como a dele.
Feita de doce e fel
Ninguém a compreendia
Por isso se fez assim,
Um pouco sozinha.

Viola, violino, quem sabe um violão?
A quietude que, numa melodia,
Como cheiro de café fresco,
Aproximou a bailarina
E o restante de seus anseios.

Liras confundindo-se com harpas
Num aviso interno,
Os pensamentos gritavam
Mesmo assim não percebeu a armadilha
Viu-se presa num labirinto.

Por sua canção o amou
Observando-o sempre de longe.
Ao lado do garoto viajante
Continuou a garota que sempre foi:
Tornou-se a menina que se esconde.

Escondida permaneceu;
Achou que ninguém a percebia
Nem mesmo seu anjo nomeado
Mas restava-lhe a dúvida
E uma pequena esperança nasceu.

E agora:
O que houve com ela?
Ele, por fim, a percebeu?
Nada restou esclarecido
Muito menos o adeus.

domingo, julho 07, 2013

Tintura à Sangue



A jovem limpava o pincel, com cuidado. O quadro estava quase pronto. A paisagem era triste e sombria, de modo que as cores predominantes fossem o azul e o preto. Normalmente, usava cores alegres em suas pinturas. Porém, já usara o vermelho vezes demais; suas mãos ainda estavam sujas com a cor forte, fazendo contraste com as cores frias predominantes. Iniciara a pintura à cerca de um mês. Nunca demorara tanto para pintar um quadro, mas seu estado de espírito não ajudava. Fizera a paisagem baseada em si mesma. Ou melhor, em como se sentia.

Zoe sempre fora o tipo de pessoa explosiva. Carente, de fato, mas um tanto explosiva. Seus relacionamentos eram baseados no ciúme, e já perdera a amizade de muitos por causa desse sentimento. Mas não se perdoaria se o perdesse também. Afinal, estava tentando ao máximo manter a calma em situações de estresse e, graças a ele, descobrira na pintura mais do que um passatempo, mas uma nova forma de ver o mundo. Nunca antes imaginara que as cores pudessem expressar tão bem os sentimentos.

Em sua maioria, usava cores alegres, como o amarelo, o laranja e o vermelho; essas cores representavam bem a alegria que sentia quando estava com ele. A alegria que sentia em sua presença, no entanto, nunca fora suficiente para prevenir brigas. Muito pelo contrário, essas eram constantes. Haviam tentado todo o tipo de coisa para parar com isso, desde a velha terapia da pintura - de longe, a preferida de Zoe -, como também longas conversas, que acabavam em mais brigas. Era como se a tendência fosse sempre piorar, como se o relacionamento inicial perfeito que tiveram nunca tivesse existido. Ficava, de fato, cada vez mais difícil manter a calma, e nem sempre pintar ajudava. Mas nunca se sentira tão calma depois de uma briga como se sentia agora.

Pensava sozinha, ao mesmo tempo em que cantarolava baixinho uma música há muito esquecida. O melhor caminho a se tomar era fácil, bastava apenas não demonstrar seu ciúme. Afinal de contas, se não o mostrasse, não haveriam mais brigas. Mas não havia necessidade de tanto, achava ela. Não haveria mais briga nenhuma. A tão conhecida calmaria tornou a tomar conta de Zoe, quando ela finalmente terminou a pintura.
— Está pronto. — Sussurrou, olhando para o rosto daquele que tanto amara, agora sem vida. — Ficou bonito, não ficou?

Sua voz soava como a de uma criança que ganhara o presente de aniversário antes da data. A satisfação era óbvia. Um sorriso doce se abriu em sua face, ao olhar, com ternura, para a flor pintada em vermelho no quadro. Um bonito contraste com todo o preto dominante. De fato, agora parecia se encaixar exatamente no relacionamento passado de ambos: o preto misterioso e frio de Zoe, junto com o vermelho chamativo e cheio de vida dele. Bem, agora ambas as cores estavam relacionadas a ele. A partir daquele momento, ele poderia ver apenas o preto, e Zoe fizera questão de deixar sua marca, sua marca de orgulho, ciúme e violência no sangue que se espalhara na camisa outrora branca que ele vestia. Nunca mais irei quebrar o acordo que fiz comigo mesma, avaliou, enquanto lavava as mãos, sujas com sua tão adorada tinta-sangue.

sexta-feira, julho 05, 2013

Rozen Maiden

O pensamento distante,
Nem mesmo se importa com o instante

Expectativas desleais à minha esperança
E o doce sonho de voltar a ser criança

Uma lua roxa num céu já sem vida
Trazendo à tona um já esquecido sorriso de menina

Uma frágil boneca de porcelana
Será que alguém ainda a ama?

Mas ela sempre será guardada em uma estante
Com um sorriso errante

Escondida da tristeza mundana,
E tratada como nada além de uma boneca de porcelana

quarta-feira, julho 03, 2013

Sobre Florence



Em meio a rosas acordou
Olhou para o lado,
Viu apenas o vazio
E sozinha se lamentou

Há muito vivia assim.
Sempre se sentiu diferente
Não confiava em ninguém
Até que decidiu pelas rosas, enfim

Flores, sim, mas fiéis
Sempre estiveram ao seu redor
Em vasos ou em quadros
Pintados com um de seus vários pincéis

Tentou outras soluções
Talvez poeta, ou atriz
Mas tinha com elas, apenas com elas
A mais perfeita das relações

Muitos a julgaram
Ninguém a apoiou
Será que todos estariam como ela
Felizes onde chegaram?

Nada daquilo a perturbaria
Estava em paz consigo mesma
Fecharia os olhos, aguardando
O fim que nunca chegaria

Voltou ao lugar de onde veio
Plantou uma semente no vaso
Tão vazio quanto fora
Esperaria florescer, com anseio

Em meio a rosas foi dormir
A rotina era sempre a mesma
Mas tinha suas flores
Sua única razão de sorrir

segunda-feira, julho 01, 2013

Pequena Menina



Pequena menina,
do sapatinho de cristal
Contentada com a rotina
Sabe diferenciar bem e mal

Pequena menina,
curiosa e segura de si
Não vive sem a água cristalina
Cabelos vermelhos como rubi

Pequena menina,
rebelde, prefere um simples ladrão
Não segue qualquer tipo de doutrina
Está cansada de ser filha de sultão

Pequena menina,
corajosa, foi para a guerra
Voltou grande heroína,
venerada por toda sua terra

Pequena menina,
sempre com histórias a contar
Sabe todas elas de cor,
mas nunca para de sonhar