quinta-feira, janeiro 02, 2014

This is Home


A porta do carro foi batida com força, logo após a adolescente sair, pisando duro e exalando raiva. O pai saiu do lado do motorista logo após, com uma mistura de ira e decepção. Nenhum deles me viu. Nenhum deles me sentiu. Não até agora.

Ele gritou mais alguma coisa para ela. Acho que vieram todo o caminho para casa aos berros. A essa altura, eu podia ver o traço brilhante que as lágrimas deixaram no rosto dela. Nenhum dos dois lembrou-se de pegar a mala da garota, jogada de qualquer jeito no banco traseiro. E nem eu lembrei, na verdade. Estava muito ocupado tentando identificar a causa das lágrimas. Raiva? Frustração? Ou a clássica tristeza? Ou, vai ver, eu sou o causador.

Oh, perdoe minha falta de educação, não me apresentei! Eu sou o Amor. Imagino que, como várias outras pessoas, você imaginava que uma figura feminina representasse meu sentimento. E é, às vezes. Você sabe, sentimentos podem muito bem assumir a forma que bem desejam, mas se assumíssemos nossas verdadeiras formas, com certeza não poderíamos ser discretos como devemos, em certos casos, e sob forma humana, seríamos tão velhos quanto possível. E que credibilidade com as pessoas teríamos, assim? As pessoas tem o péssimo hábito de não valorizar o que é velho, que tem histórias para contar.

Nesse momento, não passo de um adolescente, assim como ela. Nem mesmo sei o seu nome. Tenho ordens de não me envolver demais nas histórias que crio, mas é impossível, às vezes. Ainda lembro-me bem do desastre em que terminou Romeu e Julieta, ou mesmo Cyrano e Roxane. Acho que essa se chama Sofia. Ainda com o pai gritando coisas horríveis que eu não me importava em entender, ela olhou para o outro lado da rua. Bem para onde eu estava. Certamente não me reconheceu, e talvez tenha pensado que sou apenas um parente ou amigo de seu vizinho. Ela não me reconheceu, mas eu entendi, finalmente. Acho que as lágrimas eram de tristeza, afinal.

Ela entrou em casa. Casa. Palavra estranha diante toda essa situação. Veja bem, eu sei que todos me veem como O Mais Bonito dos Sentimentos, ou ainda O Sentimento que Move o Mundo. Mas as coisas não funcionam assim. É claro que também não sou perigoso, e tampouco obrigo as pessoas a fazerem coisas que quero que façam, mas posso influenciá-las. E essa menina, Sofia, foi influenciada por mim. Eu assumo a culpa. Mas, em minha defesa, a ideia parecia bastante aceitável na mente sonhadora de menina de 16 anos dela. Eu a ceguei, mesmo sem querer. Juntara a mesada durante meses. Arrumara algumas poucas roupas dentro de uma mala pequena, e estava pronta para assumir as responsabilidades como adulta e viveria com o namorado.

Mesmo para mim soa um plano burro e precipitado. Desculpem a grosseria, mas é como vejo. E é claro que deu errado. Por motivos como esses, por pessoas que confiam tão cegamente em mim que perdem a razão, é que perco também minha credibilidade. Não sou um sentimento vão, e grande parte das vezes sou racional também, ao contrário do que sei que imaginam por aí.

Ao menos tudo acabou bem, mesmo que a fugitiva não seja capaz de entender. Ainda é jovem demais para entender minhas motivações, e onde me encontrar. Ela acha que estou apenas onde seu amado está, assim como muitas menininhas apaixonadas por aí. É uma pena que não posso me comunicar diretamente com elas e lhes contar que não é assim que funciona. Eu estou em todo lugar, assim como o ar que ela respira, pois sou como a terra e o céu.

Ela vai entender um dia, eu sei disso. Enquanto não entende, acho que posso contar com a sensatez de seus pais para mantê-la em casa, segura e a salvo. E, no final das contas, ela conseguiu o que queria também. Queria estar onde o amor está, e embora ela esteja longe de onde sua paixão está, eu estou aqui. Quando a raiva passar, talvez ela perceba isso por si mesma, e se sinta em casa novamente.

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